Por Bruno Soller(*)
Inspirada pela assunção de Nelson Mandela à presidência da África do Sul, três anos após sua saída da prisão de quase três décadas por lutar contra o regime segregacionista do apartheid, a agenda da inclusão racial virou protagonista, em meados de 90, para os principais líderes mundiais. Pelé, um dos maiores ídolos brasileiros e negro, quando assumiu o Ministério Extraordinário dos Esportes, no governo FHC, engajando-se em um movimento que pedia que mais negros fossem eleitos para o Congresso Nacional, foi categórico e disse: “É bem mais fácil você eleger um negro para discutir o problema do negro”.
A frase, que parece óbvia, entretanto, está bem distante da realidade brasileira. São apenas 4% dos deputados eleitos, em 2018, que se declaram negros, contra 75% que se declaram brancos. Há uma notória subpresença de representantes da raça negra, que é ainda maior quando se analisa a falta de pautas sobre a promoção da igualdade racial. Das mais de cem diversas frentes parlamentares ativas na Câmara Federal, apenas três se relacionam com o tema.
Essa baixa performance pode ser decorrente de uma própria ideia concebida na sociedade. Apenas 7,5% dos brasileiros se consideram negros. O número parece muito abaixo no país que recebeu 37% da totalidade de escravos que vinham para as Américas. Um estudo genético realizado por todo território nacional, coordenado pelo IBGE, mostra que 28% dos brasileiros que se consideram brancos pertencem ao haplogrupo de origem africana. São também, 33% de origem ameríndia e 39% europeia. Há ainda no país 43,5% dos habitantes que se auto intitulam pardos, que são misturas raciais entre o elemento branco, negro e indígena, às vezes mesclados apenas entre dois deles.
Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, o brasileiro quando perguntado sobre sua cor, ele considera mais importante a tonalidade da tez. Para 74% dos entrevistados, pela mesma pesquisa do IBGE, é a pele que define sua coloração e não a raça. Os americanos, de maneira diametralmente oposta se classificam pela origem, muito provavelmente em função de um controverso princípio de estratificação racial que perdurou pelos século XX, chamado “one drop rule” (regra da uma gota), em que a pessoa que tivesse pelo menos um ancestral de origem africana, era considerado afro-americano.
De certa maneira, se há algo positivo nessa esteorotipização, foi o fato do negro estadounidense se organizar melhor politicamente e socialmente do que o brasileiro. Os movimentos antirracistas e de afirmação de identidade promoveram grandes mudanças comportamentais no país, na década de 60, e ainda, hoje, estão convulsionando o sistema, após o asfixiamento do jovem George Floyd. É impossível fazer uma eleição, nos Estados Unidos, se não se discutir o comportamento do eleitor negro, que apesar de diverso, tem sempre o amálgama da luta pela conquista e equalização de direitos.
Em 2016, Hillary Clinton, candidata democrata, não conseguiu fazer com que o afro-americano saísse de casa para votar, mesmo ela sendo a candidata da continuidade do primeiro presidente negro da história do país, Barack Obama. Existem fenômenos interessantes ao se observar o eleitor negro americano, que é uma boa parcela de conservadorismo comportamental, já que 88% são evangélicos-protestantes.
A radicalização progressista de Hillary Clinton preocupada em buscar o voto do fenômeno Bernie Sanders acabou por afastá-la desse eleitor mais religioso. Trump venceu com a abstenção dos negros das regiões metropolitanas de Jacksonville, Miami e Tampa, na Flórida e do Cinturão da Ferrugem. O jovem afrodescendente, nascido na década de 80, mais progressista, morador dos grandes centros urbanos sentia certo distanciamento da figura de Hillary Clinton e havia pouca identidade com ela, conforme apontavam pesquisas qualitativas da época.
No Brasil, seria uma abstração dizer que há um voto definido por identidade racial. O voto do negro brasileiro está muito mais associado a questão da renda e classe social do que por um padrão comportamental. Os negros brasileiros são apenas 17% entre os mais ricos e são 75% entre os mais pobres. Há desde 2006, uma tendência no voto mais à esquerda, dominado pelo lulismo, mas, vale lembrar que esse mesmo eleitor votou por toda a década de 90 nos tucanos e no PFL, acompanhando o padrão eleitoral das camadas mais baixas da sociedade. Esse fenômeno da integração da cor com a renda, também é vista na França. Marine Le Pen teve a maioria do voto negro, mesmo tendo posições extremadas à direita, mas como era vista como uma defensora dos trabalhadores, contou com a simpatia dos afro-franceses, situados nos estratos mais pobres.
A presidência de Jair Bolsonaro e o alinhamento internacional com o trumpismo, todavia, pode estar criando uma nova forma de organização desse voto. É a primeira vez, desde a redemocratização, que um presidente eleito inicia sua gestão tendo pior avaliação entre os mais pobres do que entre os mais ricos. Há também uma convergência de agendas comportamentais que nunca foram tão integradas e presentes nas discussões brasileiras, como tem sido desde sua posse, mesmo que seja de origem oposicionista.
As manifestações pró-Bolsonaro expuseram alguns grupos que ostentam bandeiras supremacistas, como a do partido ucraniano Pravy Sektor, que tem entre seus idealizadores simpatizantes do nazi-fascismo. Algumas ações do próprio governo foram entendidas como mensagens racistas, como o vídeo do ex-secretário de Cultura, que fazia alusões a um discurso do propagandista do nazismo Joseph Goebbels e a polêmica bebida de leite que contou com a participação do presidente, e gerou discórdia por ser uma simbologia usada por neonazistas.
Essa nova realidade pode estar dando início a um alinhamento do comportamento de escolha do afro-brasileiro. Existe, entretanto, um caminho enorme para que se possa consolidar uma característica em comum que faça a estratégia de uma campanha eleitoral olhar para o voto negro como se olha para outros segmentos da sociedade. O voto negro brasileiro pelo seu tamanho importa demais, mas ele ainda precisa de uma identidade que se dê por bandeira e não somente pela circunstância socioeconômica.
(*) Bruno Soller é estrategista político e especialista em pesquisas de opinião. Escreve às terças-feiras no Eleições Brasil.
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