Por Rubens Pereira Júnior (*)
Vivemos uma tragédia sanitária em escala mundial. Os números diariamente atualizados mostram a força destruidora da Covid-19. E infelizmente, sem termos certeza de quando superaremos este desafio.
Este cenário catastrófico obrigou que os governos pelo mundo afora adotassem medidas para tentar frear a disseminação do vírus, dentre as quais se destaca o isolamento social.
Tal medida forçou a diminuição da circulação de pessoas, bens e serviços, o adiamento de eventos de grande porte (como as Olimpíadas de Tóquio), suspensão de torneios de todos os esportes, o fechamento de shoppings, restaurantes, praias, clubes e muito mais! O FMI já prevê que a crise econômica decorrente da pandemia será a pior desde a Grande Recessão.
A triste situação que nos assola já causa nefastos e concretos efeitos nas relações sociais, econômicas, políticas e jurídicas. No meio do caminho, aproxima-se algo de importância ímpar para o Estado brasileiro e, em especial, para o povo, titular do Poder: o Processo Eleitoral.
As eleições municipais têm data prevista para o primeiro domingo de outubro vindouro e, naqueles municípios onde houver segundo turno, no último domingo do aludido mês. É impossível termos processo eleitoral, tanto o micro quanto o macro, diante do necessário isolamento social, que já comprometeu boa parte do prazo de pré-campanha.
Se fossem hoje, as campanhas não contariam com comícios, panfletagens, passeatas, corpo a corpo, reuniões, etc. Do contrário, os atos democráticos se transformariam em vetores da propagação do vírus. Neste contexto, vários e acirrados debates começam a tomar forma, dentre os quais a necessidade de adiamento das eleições.
O Judiciário, por sua cúpula, em claras manifestações dos seus ministros, em especial exemplo Luís Roberto Barroso, Presidente do TSE, tem demostrado justa preocupação com a realização das eleições nas datas previstas legalmente.
Como não poderia ser diferente, o debate também fora suscitado no Congresso Nacional que, por informe dos presidentes de Câmara e Senado e de diversos líderes, já se mobiliza no sentido da gestação de comissão especial com objetivo de debater um possível adiamento das eleições, além de haver inúmeras proposições sobre o tema em tramitação.
Alguns traços iniciais já tomam forma, como a previsão da possível remarcação das datas do primeiro e segundo turnos para os dias 15 de novembro e 06 de dezembro, respectivamente, ou em datas próximas. Lembrando que não é viável adiar muito para o final de dezembro pois dificultaria que a Justiça Eleitoral conseguisse julgar as contas eleitorais e diplomar os eleitos em tempo tão curto.
Três tópicos nos trazem preocupação quanto ao tema, no que concerne sua operacionalização jurídico/política: a preocupante possibilidade de prorrogação de mandatos dos atuais detentores, o debate que envolve o princípio da anualidade eleitoral e a forma de regulamentação normativa da matéria.
Sobre o primeiro tópico, a prorrogação de mandatos se mostra inimaginável constitucional e democraticamente falando, vez que, como já decidido pelo STF, a legitimidade expendida na certeza jurídica da temporalidade dos mandatos é absoluta cláusula pétrea, estampada no direito ao voto direto, secreto, universal e periódico, consagrado de forma expressa pelo constituinte originário, conforme inteligência do artigo 60, § 4º, II da CF. Mandatos com prazo indeterminado não são compatíveis com a forma de governo republicano.
Em recente julgado, o STF enfrentou a matéria na ADI 6.359, de relatoria da ministra Rosa Weber. A ministra relatora denegou pedido cautelar, que posteriormente fora referendado pelo Pleno da Corte.
Em suas argumentações, defendeu que a ampliação dos prazos por parte do STF poderia criar uma situação de anormalidade que geraria a possibilidade, em tese, da prorrogação dos mandatos atuais o que, uma vez prosperando, feriria de morte a cláusula pétrea erigida pela periodicidade do voto e, por conseguinte, da temporalidade dos mandatos.
No tocante a matéria que envolve a anualidade eleitoral, o STF possui uma sólida jurisprudência a respeito da interpretação do art. 16 da CF, em especial no afeto à possibilidade decisória de adiamento das eleições.
O julgamento da ADI 354, de relatoria do min. Octavio Gallotti, foi a primeira oportunidade em que o Tribunal Constitucional se debruçou com maior profundidade no significado do princípio da anterioridade eleitoral na Constituição de 1988.
As teses vencedoras deste julgamento expuseram, entre outras, que o art. 16 da CF visa impedir apenas alterações casuísticas e condenáveis do ponto de vista ético, devendo sua interpretação levar em conta as peculiaridades nacionais.
Deste modo, fixou-se o entendimento de que a teleologia da norma constitucional em apreço é a de impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações nele inseridas de forma casuística e que interfiram na igualdade de participação dos partidos políticos e seus candidatos.
O mesmo entendimento foi repetido no julgamento da ADI 3.345, de relatoria lavrada pelo min. Celso de Mello, que em seu voto destacou que “[…] o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais”.
Igualmente relevante é colacionar o entendimento da Corte no julgamento da ADI 3.685, relatada pela min. Ellen Gracie, onde se passou a identificar no art. 16 uma garantia fundamental do cidadão-eleitor, do cidadão-candidato e dos partidos políticos.
Assim, consolidou-se a noção de que o art. 16 é garantia de um “devido processo legal eleitoral” e, portanto, constitui cláusula pétrea, oponível inclusive em relação ao exercício do poder constituinte derivado.
Por fim, na análise da ADI 3.741, relatada pelo min. Ricardo Lewandowski, o STF se posicionou no sentido de não haver violação ao princípio da anterioridade eleitoral quando: 1) inexistir rompimento da igualdade de participação dos partidos políticos e dos respectivos candidatos no processo eleitoral; 2) a lei não introduzir deformação ou fatores de perturbação do pleito de modo a afetar a normalidade das eleições; 3) inexistir alteração motivada por propósito casuístico que prejudique envolvidos no processo eleitoral.
Desta forma, fica claro que o adiamento da data das eleições, fundado nas circunstâncias que alongamo-nos em elencar, vinculado ainda à triste situação que nos aflige pelo acometimento da pandemia da Covid-19, não pode ser considerado como ato casuístico e atentatório ao princípio constitucional da anualidade, mas sim uma necessária condição de preservar vidas.
Ademais, tal adiamento não irá beneficiar candidatos A ou B, o que afasta quaisquer circunstâncias que prejudicassem a paridade de oportunidades entre concorrentes.
Com relação ao terceiro ponto, que vislumbramos como de natureza política e que trata a questão da regulamentação necessária para o adiamento da data da eleição, entendemos que a melhor via seria a aprovação de uma Emenda Constitucional para acrescentar ao ADCT a fixação da data do pleito municipal do corrente ano, por claras e justificadas razões de excepcionalidade, como a que atualmente vivemos.
Não deve se tratar de alterar o artigo 77 da Constituição, como há diversas tentativas no Congresso Nacional. Este debate, sobre alteração definitiva da data das eleições ou sua unificação, deve ser feito longe dos impactos de uma pandemia. Agora, deve se tratar, excepcionalmente, nas disposições transitórias, apenas sobre a eleição de 2020.
Resta analisar um cenário possível, mas não desejado: o Congresso não decide sobre o adiamento e a crise sanitária se agrava, sendo necessário o adiamento das eleições, com o processo já em curso, gerando uma incerteza institucional sem precedentes.
Neste cenário, hipotético e catastrófico, a Justiça Eleitoral seria obrigada a adiar a eleição por resolução, sem debate público, com data possível até no próximo ano, desconsiderando, repito, a absurda prorrogação de mandatos.
Sendo assim, se as eleições fossem suspensas por decisões judiciais sem data para novo pleito, quem assumiria os cargos de vereadores e prefeitos na legislatura seguinte? Ocorreria uma tripla vacância no comando municipal. E qual desdobramento para este cenário?
A jurisprudência do STF já fixou o entendimento no sentido de que é de interesse local disciplinar a sucessão ou substituição de chefe do Poder Executivo municipal, não havendo obrigatoriedade da observância do artigo 80 da CF (Vide ADI 3.549, ADI 4.298 e RE 655.647).
Entretanto, há uma abissal diferença entre uma dupla vacância em um município, e uma tripla vacância em todo o país decorrente de uma pandemia. Neste caso, deixa de ser interesse local e a saída deve ser buscada dentro do próprio sistema constitucional.
Dito isto, não nos surpreenderia que o art. 80 da CF fosse aplicado aos municípios por simetria. Não havendo prefeitos, vices e vereadores eleitos, seriam chamados os juízes para assumirem os comandos municipais, até a realização do pleito. E mais preocupante, sem sequer existir um Legislativo eleito para fiscalizar e acompanhar. Seria o mais grave capítulo de omissão legislativa e judicialização da política.
Com efeito, em resposta às situações excepcionais, como é o caso, é necessária a tomada de decisões excepcionais. É hora, portanto, de o Congresso Nacional efetuar todos os esforços com vistas ao adiamento das eleições de outubro para data razoável, pois assim atenderá tanto a prevenção à Pandemia como garantir a normalidade das eleições.
(*) Rubens Pereira Júnior é Deputado federal pelo PCdoB-MA. Advogado. Mestre em Direito Constitucional.
Fonte: Jota
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