Por Bruno Soller (*)
Desde 1989, Lula é figura fundamental no xadrez eleitoral brasileiro. Na primeira eleição pós redemocratização, o ex-metalúrgico petista por pouco mais de 0,7% de votos tirou Leonel Brizola do segundo turno e enfrentou Collor, saindo derrotado. Algumas projeções mostravam que Brizola ou até Covas, que ficara 5% atrás de ambos, poderiam ser mais competitivos contra o prodigioso candidato do PRN, que acabou se tornando presidente da República. De lá pra cá, todas as eleições tiveram Lula como protagonista, sendo que de 2002 pra frente, ele virou o centro do debate no país.
Mesmo sem poder se candidatar, já que é condenado em segunda instância e considerado pela justiça como ficha-suja, o lulismo, uma corrente de fidelização de eleitores, localizada principalmente nas camadas mais pobres da sociedade, é o adversário ideal para o atual presidente e é o adversário a ser batido por aqueles que querem derrotar Bolsonaro.
Lula, após três décadas, já não tem mais o vigor dos vitoriosos, mas ainda é a opção de voto de uma grande parcela do eleitorado, que o assegura vivo nas disputas.
Ao se tornar presidente, Lula criou um vínculo direto com o lumpesinato, adotando um termo marxista. As classes baixas tinham no presidente o seu espelho. Os programas de transferência de renda, como Bolsa Família e os sociais como o Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida, ProUni e até o fracassado Fome Zero, tinham um único objetivo: dialogar com o público mais carente. Lula percebeu na estratégia política que por mais que esse eleitorado tivesse já votado nos coronéis da ARENA e PFL, a relação com estes era de subserviência e não de igualdade. Lula era um dos pobres no poder e isso alimentou uma fidelidade irresoluta que os arrasta num vínculo até os dias de hoje.
Pelo menos 1/3 da classe D, que tem uma renda média familiar de 850 reais mensais e ¼ da classe C2, que vive com rendimentos médios de 1500 reais declaram de imediato seu voto em Lula, mesmo impedido. Essa devoção foi responsável por fazer de Haddad, um mero desconhecido, em um candidato competitivo, na última eleição, saltando de míseros 4% para 30% no primeiro turno e 45% de votos no segundo. Lula, mesmo encarcerado, manteve o apreço desse eleitor e segundo as sondagens mais recentes sobre 2022, continua pontuando bem neste segmento social.
A prisão, no entanto, deixou marcas significativas. A rejeição ao ex-presidente o coloca numa situação difícil para um processo de duas voltas. O segundo turno é impiedoso contra as rejeições, já que vira um jogo delas e aquele que menos agrega votos dos que foram barrados no primeiro round, é derrotado. É nisso que aposta o atual presidente, que também carrega consigo altíssima rejeição. Quer fazer um jogo de menos pior contra o lulismo. Lula é seu adversário ideal. Contra ele, Bolsonaro insistirá na narrativa de combate à corrupção, ao comunismo, à quebra do país e à perda dos valores.
Para Bolsonaro é extremamente perigoso enfrentar um outro adversário que não seja o velho conhecido petista. Outros candidatos podem ser agregadores dos votos de quem rejeita o presidente, o que o tornaria sua missão quase impraticável. Para que cheguem a enfrentar o militar, todavia, precisarão derrotar o adversário posto, que se chama Lula. Penetrar no fiel corredor do eleitorado lulista é um encargo penoso, mas pela distribuição sociodemográfica brasileira é a única maneira de sair vitorioso no próximo pleito, já que o único nome que parece ser capaz de causar problemas para Bolsonaro dentro do seu eleitorado é Sérgio Moro.
O Brasil tem 54,6% dos seus habitantes enquadrados nas classes C2 e D. No Nordeste, são 70,8% de pessoas nessas faixas sociais. A discussão para quem vive com o mínimo está longe de ser ideológica ou de costumes. O voto nesse público em nada está associado a debates sobre liberalismo econômico ou sobre pautas comportamentais e afins. A questão central é renda e serviços básicos. Lula entendeu isso de cara e conseguiu por sua origem vincular identidade com a causa.
Dos pretensos postulantes à presidência, apenas um performa melhor nas classes mais baixas, o apresentador Luciano Huck. No entanto, seu voto é concentrado no Sudeste e no Sul do país. É um voto de classe C2 mais urbano, das favelas e periferias das grandes cidades. Para crescer nesse eleitorado precisa dialogar com o Nordeste, buscar o voto sertanejo, das pequenas cidades, onde está a maior concentração desse nicho. O global assiste diretamente pessoas com seu programa televisivo, solidariza-se com as causas populares, tendo um bom ativo para se conectar com esse eleitor. Não pode cair na ânsia de querer agradar os formadores de opinião de elite, que dificilmente comprarão o seu discurso até pelo preconceito de o acharem apenas um artista.
Para essa intelectualidade à esquerda, existe o nome de Ciro Gomes, que puxado pelo o estado que governou, consegue ter boa presença no Nordeste, mas seu voto está longe ser popular. Quanto maior a renda, maior o voto no ex-governador cearense. Ciro faz a contraposição ideológica a Bolsonaro, e por isso amealha votos de uma esquerda de classe média, que sentiu as denúncias de corrupção contra Lula, mas é insuficiente para buscar o grosso do voto lulista, que está na base da pirâmide. Seu melhor resultado em três eleições foi de 12%.
O lulismo pode se reinventar com versões mais modernas de gestores petistas bem avaliados. Rui Costa, governador da Bahia, e Camilo Santana, do Ceará, ambos em segundo mandato estão aptos a serem uma atualização dessa corrente, partindo da facilidade de já serem conhecidos na região Nordeste e serem de estados populosos. Com o empobrecimento do país, em especial, nos estados nordestinos, as classes C2 e D serão inchadas aumentando ainda mais o seu papel decisivo na contenda eleitoral.
Diante de um cenário ainda incerto de candidaturas, uma coisa é certa: Lula é novamente uma força estabelecida na guerra eleitoral. Sabedor disso, não aceita compor com ninguém, com nenhum movimento que não parta dele. Sabe que sua força não é mais a mesma, mas mesmo assim, entende que sozinho é mais forte que os demais. Para superá-lo é peremptório entender a força-motriz do seu voto e disputa-lo com foco exclusivo. Bolsonaro sonha em enfrenta-lo, é seu adversário escolhido, mas para os demais candidatos, que sonham derrotar o bolsonarismo, Lula é o adversário real.
(*) Bruno Soller é estrategista político e especialista em pesquisas de opinião. Escreve às terças-feiras no Eleições Brasil.
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