Eleições Brasil

Desigualdade digital afeta campanha

A comunicação digital imposta aos partidos pela pandemia trouxe para o período de pré-campanha desafios que devem marcar uma eleição com características inéditas. Para uma parcela de candidatos historicamente menos representados, esse cenário é ainda mais complexo.

A desigualdade digital presente num país em que 70 milhões de brasileiros tem acesso precário ou nenhum à internet, como mostrou a Folha, cria uma barreira adicional tanto na articulação partidária, quanto na comunicação com o eleitorado.

Na rua onde mora, no bairro de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, a pré-candidata a vereadora pelo PSOL Elaine Mineiro, 36, conta que as operadoras não disponibilizam a instalação de internet de fibra óptica. Ela faz parte de uma chapa coletiva do movimento negro que reúne ativistas que moram e atuam nas periferias da zona leste e sul da cidade.

“A gente têm uma internet fraca, que vive caindo, e quando você reduz a nossa participação à internet, também reduz o nosso acesso”, afirma a arte-educadora, acrescentando que nem sempre é possível acompanhar as lives feitas pela sigla.

Com a quarentena, a coordenadora do PSD Mulher, Alda Marco Antônio, diz que o partido criou grupos de WhatsApp com as filiadas de todos os estados e passou a fazer reuniões online com as pré-candidatas, que são estimuladas a gravar um vídeo depois do encontro.

Segundo ela, a tecnologia facilitou o contato com diferentes localidades, poupando viagens, apesar de não substituir o contato presencial. Há mulheres, porém, que não conseguem participar por problemas de conexão.

No Acre, por exemplo, ela conta que recebeu da coordenadora estadual o pedido de envio de material impresso, pela falta de internet e dificuldade para chegar às bases, uma demanda que afirma ter encaminhado aos dirigentes do partido, mas que ainda não conseguiu atender.

O pesquisador do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas, Ivan Mardegan, diz que contextos normais, em que as reuniões acontecem nos diretórios, longe da periferia, já dificultam a participação, que poderia ser facilitada no ambiente online se houvesse igualdade no acesso.

Mardegan faz parte de um projeto da Escola de Direito da FGV que estuda representação nas eleições de 2018, além de redes sociais e desigualdades.

Ele avalia que a nova dinâmica criada pelo isolamento durante a pandemia pode ampliar a dificuldade de inserção nas legendas. “Esse cenário é mais um complicador para aqueles que já têm algum tipo de dificuldade de construção dos capitais políticos, dentro do partido e na comunidade”, afirma.

Alda, que foi vice-prefeita de São Paulo na gestão de Gilberto Kassab (PSD), concorda. “Numa situação dessas é fácil verificar que favorece quem já tem mandato, que passou por uma eleição e sabe onde buscar voto, tem amizades relacionadas, ao passo que uma mulher de primeira candidatura tem que criar tudo isso”, diz ela.

Em sua primeira disputa eleitoral, Elaine afirma que para o grupo que não está inserido em nenhuma corrente partidária ficou mais difícil conhecer as lideranças e fazer a articulação política. “Para gente que é de quebrada e vem de movimento, é um pouco mais complicado. Você tem que aprender a entrar no jogo e fazer essas negociações.”

Para o historiador e cofundador da Uneafro Brasil Douglas Belchior, a tecnologia pode permitir a criação de novos espaços de comunicação, mas isso por si só não garante a participação nos espaços decisórios ou altera estruturas desiguais nas legendas.

“Você pode até participar da reunião do partido, mas não é você que decide em quem a sigla vai investir. Isso continua a cargo de pequenos grupos elitizados, de classe média branca, tanto na esquerda quanto na direita”, disse.

O cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Fernando Guarnieri diz não ter visto até o momento alterações no processo de definição de candidatos, que envolve as elites partidárias e não depende do contato físico para acontecer.

“O que estamos vendo é que os partidos continuam ativos nisso e as lideranças têm elaborado essas estratégias apesar da pandemia”, diz. Para ele, caso haja um número maior de candidaturas do que vagas, isso demandará a realização de convenções, cujo desenvolvimento permanece como incógnita.

Além desses aspectos, a comunicação com o eleitorado é outro aspecto que preocupa a pré-candidata à vereadora pelo MDB em São Paulo e líder da Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade) Aline Torres, 34.

“Aprendi a fazer olhando no olho das pessoas e andando na rua. Nada disso é possível nesse momento e o meu eleitorado é de periferia. As pessoas não têm Zoom pra fazer reunião online”, diz Aline, referindo-se a um aplicativo de videoconferências.

Aline é uma mulher negra e foi candidata a deputada federal em 2018 pelo PSDB, partido ao qual esteve filiada desde os 19 anos, mas onde diz ter visto a questão da representatividade perder espaço.

Na nova legenda, à qual se filiou em abril deste ano, afirma que encontrou um olhar especial para pré-candidatos recém-chegados e que enfrentam mais dificuldade na disputa.

Para mulheres, ela conta que o MDB tem promovido formações semanais para ensinar desde o básico estratégias de comunicação digital.

“Isso é um diferencial, porque tenho amigos em outros partidos em que tem um monte de mulher desistindo de ser candidata justamente pela falta de suporte e pelo medo de fazer campanha, porque o processo mudou”, diz.

Elaine conta que até o momento o PSOL não realizou formações sobre comunicação online para a campanha. Segundo o partido, embora ainda não tenham acontecido ações na cidade de São Paulo, outras atividades nesse sentido já foram promovidas em outros diretórios da sigla.

No PSD, Alda diz que o partido realizou duas formações para pré-candidatas antes da quarentena e que o partido tem incentivado as candidatas a criar grupos de comunicação online. Com o incentivo, ela diz que não houve desistências na legenda.

“Ainda não sabemos se (a comunicação online) é melhor ou pior. É diferente e é o que podemos fazer nesse momento”, afirma.

Fonte: Folha de São Paulo

Sair da versão mobile