A pandemia e o equívoco da unificação eleitoral

Por Ana Carolina de Camargo Clève (*)

A pandemia do novo coronavírus está a demonstrar que a adaptação da realidade às novas circunstâncias é preocupação que está na agenda do mundo todo. Tanto em relação à esfera privada da vida cotidiana, quanto no que se refere ao funcionamento das instituições públicas.

Um fato é certo: o “novo normal” traz o desafio da resiliência e — sobretudo em relação àqueles ocupantes de cargos públicos com competência decisória — impõe, também, a capacidade de dialogar de modo racional, interdisciplinar e comprometido com os valores constitucionais. Em síntese, a tomada de decisões na esfera pública deverá — a um só tempo — conciliar (i) a garantia de fruição dos direitos fundamentais assegurados aos cidadãos; (ii) o pleno funcionamento das instituições do Estado; (iii) a preservação de compromissos que sustentam o regime democrático; e, claro, (iv) as recomendações das autoritárias sanitárias para fins de conter a curva de contágio do vírus.

Merece atenção, nesse contexto, o debate em torno da (im)possibilidade de realização das eleições municipais previstas para 4 de outubro deste ano — data esta que segue a sorte da regra constitucional que estabelece que a “eleição do prefeito e do vice-prefeito deverá ser realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder (…)”. É que, em razão de todas as restrições que os cuidados com a pandemia impõem, discute-se se seria adequado manter o calendário eleitoral.

Ocorre que, aproveitando-se da pauta do possível adiamento do pleito municipal, há quem insista em defender a unificação das eleições — ainda que essa ideia já tenha sido rejeitada mais de uma vez pelo Congresso. Neste caso, em mudança que se operaria por meio de emenda constitucional, haveria o cancelamento do pleito previsto para este ano e os mandatos dos atuais prefeitos e vereadores seriam prorrogados para que a eleição para tais cargos eletivos viesse a coincidir com as eleições gerais (em que se vota para presidente e vice-presidente, governador e vice-governador, senador, deputado federal e deputado estadual).

Embora se admita que eventual adiamento das eleições municipais deva ser levado em consideração em razão das circunstâncias fáticas, desde logo, deixa-se claro que: (i) se necessário for, o adiamento deve ocorrer pelo mínimo indispensável para que os novos eleitos tenham condições de tomar posse em Janeiro de 2021; e que (ii) a unificação das eleições não deve ser uma alternativa. Tais premissas são praticamente consenso entre os estudiosos do Direito Eleitoral e do Direito Constitucional — tanto que a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e o Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade) firmaram tese nesse sentido. Aliás, convém mencionar que o próprio Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luís Roberto Barroso, tem se pronunciado — abertamente — nesses termos.

E por quais razões a ideia da unificação não deve prosperar? A primeira — e principal — razão é de ordem constitucional: eventual prorrogação de mandatos não atende aos princípios democrático e republicano. As demais razões dizem respeito aos inconvenientes dessa reforma, a qual resultaria nas seguintes consequências: possível sobreposição da agenda nacional sobre a municipal; mais um fator de distanciamento do cidadão da vida pública; e, ainda, dificuldade operacional da Justiça Eleitoral no que toca ao julgamento das inúmeras ações de registro de candidatura e das demais demandas relativas ao controle da legitimidade das eleições.

Portanto, embora se reconheça que não é tarefa fácil equacionar a manutenção do calendário eleitoral com as limitações impostas pela pandemia, é certo que a unificação das eleições deve estar fora de pauta. Sobretudo em momentos de crise, deve-se ter apreço às instituições e ao regime democrático. A prioridade é a saúde pública; mas, logo em seguida, deve estar a preservação da nossa possibilidade de escolher. Bem dizia Assis Brasil que quanto mais houver eleições tanto mais será o amadurecimento político das instituições e da sociedade. Não à toa, as mais avançadas experiências democráticas do mundo têm, na frequência das suas eleições e na não simultaneidade das escolhas para os diferentes cargos eletivos, um dos pilares de afirmação da maturidade político-institucional.

(*) Ana Carolina de Camargo Clève é advogada, mestre em Ciência Política e professora de Direito Constitucional, e presidente do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (Iprade).

Fonte: Consultor Jurídico

 

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