A influência de líderes religiosos nas eleições

Conceito de ‘abuso de poder religioso’ voltou a ser discutido no tribunal eleitoral. Ministro Edson Fachin defendeu limites para a relação de igrejas com candidatos a partir de 2020

Está em curso no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) um debate sobre a possibilidade de tornar o abuso de poder religioso um motivo para a cassação de mandatos na política brasileira.

A legislação eleitoral proíbe expressamente o abuso de poder “de autoridade”, em termos gerais. Mas o ministro Edson Fachin, membro do Supremo Tribunal Federal e vice-presidente da corte eleitoral, defendeu um tratamento específico para as lideranças religiosas a partir das eleições municipais de 2020. O ministro Alexandre de Moraes, único que já se manifestou sobre a questão além de Fachin, discordou.

A proposta de Fachin encontra forte oposição vinda de deputados ligados ao presidente Jair Bolsonaro, que tem nos evangélicos parte significativa de sua base eleitoral. “Mais uma brecha para perseguição ilegal de religiosos e conservadores?”, disse a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) no Twitter.

Outros processos de interesse de bolsonaristas estão em curso no tribunal, que decidirá sobre pedidos de cassação da chapa presidencial de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. A maioria das ações dizem respeito a abuso de poder econômico pelo suposto disparo em massa de mensagens políticas no WhatsApp, o que teria sido financiado por empresários em caixa dois.

No dia 23 de junho, o TSE rejeitou um dos pedidos de cassação. Proposta pela coligação liderada pelo PT, a ação pretendia responsabilizar a chapa Bolsonaro-Mourão por outdoors em prol dos candidatos instalados em diversas cidades. Pela legislação eleitoral, políticos não podem fazer autopropaganda em outdoors. Para os ministros, porém, não há provas de participação da chapa nas iniciativas.

Como começou o debate

O caso do abuso de poder religioso chegou à corte por meio de um recurso apresentado pela vereadora do município de Luziânia (GO), a pastora da Igreja Universal do Reino de Deus Valdirene Tavares. Reeleita em 2016 pelo Republicanos, partido atrelado à Universal, ela teve seu mandato cassado pela Justiça Eleitoral goiana. Primeira e segunda instâncias consideraram que a vereadora abusou de seu poder sobre fiéis para promover sua candidatura política.

No TSE, o caso começou a ser julgado no dia 25 de junho. O relator da ação, ministro Fachin, defendeu a revogação da condenação, pela ausência de provas suficientes do comportamento da vereadora. Em regra, políticos são condenados na Justiça Eleitoral por conta da relação eleitoral com fiéis quando há registros de que nos cultos ou nas redondezas da igreja pediram votos ou distribuíram santinhos, com menções a número da legenda ou propostas políticas.

Fachin, no entanto, aproveitou a decisão para defender que a corte eleitoral passe a analisar o abuso especificamente do poder religioso já em relação às próximas candidaturas.

O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Tarcísio Vieira de Carvalho. O caso deve ser retomado em agosto, quando acaba o recesso do Judiciário, segundo apuração do jornal O Estado de S. Paulo.

O que a lei proíbe

A legislação eleitoral pune com o impedimento da candidatura ou a perda do mandato políticos ou partidos que se beneficiem de:

  • Abuso de poder econômico
  • Abuso de poder de autoridade
  • Uso indevido de meios de comunicação social

As atividades religiosas são citadas expressamente em dois outros pontos. No primeiro, fica proibida a propaganda eleitoral em locais “de uso comum”, descritos como “cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada”.

Um segundo dispositivo proíbe que partidos ou candidatos recebam doações, em dinheiro ou equivalente, o que inclui publicidade a seu favor, de “entidades beneficentes e religiosas”.

A partir dessas determinações, os Tribunais Regionais Eleitorais de cada estado vêm construindo diferentes entendimentos sobre os limites de atuação de lideranças religiosas no que diz respeito à influência sobre o voto dos fiéis.

Pelo que diz a lei, não há dúvidas da ilegalidade de, por exemplo, se distribuir material publicitário de um candidato dentro de uma igreja.

Mas os entendimentos variam quando se trata de aplicar o que a lei chama de “abuso de poder de autoridade” a manifestações de lideranças religiosas que possam beneficiar determinada candidatura. Não há consenso sobre o que é necessário para caracterizar o abuso, o que pode justificar a perda de um mandato.

O que o TSE já decidiu

Em 2017, o Tribunal Superior Eleitoral, julgando um recurso de um caso particular, afirmou que a propaganda eleitoral feita por entidade religiosa, mesmo que de forma velada, é punível com a perda de mandato do político beneficiado.

Os ministros, no entanto, afirmaram que a punição se daria em razão do dispositivo que veda o abuso de poder econômico ou de autoridade a qualquer que seja, e não por conta de uma proibição específica a autoridades religiosas. “Quer dizer, no caso, não existe abuso de poder religioso, seria o abuso de poder político via religião”, afirmou em seu voto o ministro Luiz Fux, que à época compunha o tribunal eleitoral.

O que está em jogo agora

No julgamento de 25 de junho, o ministro Edson Fachin defendeu que o TSE passe a considerar em seus julgamentos a questão específica do abuso de poder religioso. Para ele e outros defensores desse tipo de abordagem, esse tipo de abuso não está expressamente previsto na lei, mas sua proibição decorre da interpretação de outros dispositivos legais, que buscam proteger a liberdade de voto.

“A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”

A ministra Rosa Weber tinha defendido em 2018 a extensão do conceito legal de abuso de poder a autoridades para além da administração pública, como lideranças religiosas.

Segundo ela, “a utilização do discurso religioso como elemento propulsor de candidaturas”, inclusive “vinculando essa escolha à própria vontade soberana de Deus”, enfraquece o processo democrático. “Induz o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmente, pelo temor reverencial”, afirmou a ministra em seu voto.

Naquela decisão, no entanto, Weber disse que o debate sobre os limites da interferência religiosa nas escolhas do eleitorado podia aguardar “momento oportuno”. No caso então em discussão, o abuso de poder econômico já estava comprovado e era suficiente para a decisão em prol da cassação.

O que dizem os críticos

O estabelecimento do abuso de poder religioso como motivo para cassação de mandatos tem sofrido duras oposições. Os críticos veem nesse tipo de entendimento uma violação do direito constitucional à liberdade de culto e uma tentativa de cercear a participação das comunidades cristãs na vida política do país.

“Não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses assim como os demais grupos que atuam nas eleições”

As críticas também vão no sentido de que os parâmetros já elencados pela legislação eleitoral dão conta de punir abusos que eventualmente aconteçam dentro de igrejas ou templos, ou em qualquer outro lugar. E a utilização de parâmetros não expressamente previstos em lei configuraria um “ativismo judicial” indevido.

Outro argumento é o de que a figura do abuso de poder religioso seria discriminatória às comunidades religiosas. “Como ficariam os abusos de poder partidário, ideológico, filosófico, sindical, associativo, escolar, universitário… com o objetivo de influenciar eleitores?”, disse o procurador do Ministério Público Federal Ailton Benedito, próximo ao procurador-geral da República, Augusto Aras.

No mesmo sentido, a Frente Parlamentar Evangélica e o Conselho Diretivo Nacional da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) afirmam que a criação de um dispositivo específico para líderes religiosos configurará “nítida ofensa ao princípio da isonomia [igualdade], visto que os líderes desse âmbito serão colocados numa posição singular perante outros setores da sociedade”.

Um terceiro argumento é o de que a legislação brasileira admite que a participação política dos cidadãos pode se dar em bases religiosas. A prova disso, segundo essa lógica, seria a possibilidade de existirem partidos declaradamente confessionais, com candidaturas de líderes religiosos — o que é proibido em países como França e México.

Fonte: Nexo Jornal