Eleição chilena polariza entre ex-líder estudantil e ‘fã’ de Bolsonaro

O Chile escolherá no domingo (21/11), em primeiro turno, o presidente que sucederá o conservador Sebastián Piñera, alvo de processo de impeachment instaurado no Legislativo.

Cinco dias antes do pleito, a disputa está polarizada entre o ex-líder estudantil Gabriel Boric (Apruebo Dignidad, coalizão de esquerda) e o advogado José Antonio Kast (Frente Social Cristã), apontado como o “Bolsonaro chileno”. O resultado pode colocar ponto final no predomínio da direita aberto com a eleição de Piñera, em 2018, e influenciar os rumos políticos do Cone Sul e do continente.

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O debate de TV entre seis candidatos presidenciais na noite de segunda-feira (15/11) mostrou o peso da realidade continental na eleição. Candidatos de centro e de esquerda assinalaram os laços de Kast, de direita, com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro.

“Bolsonaro é o melhor amigo de Kast”, disse Marco Enríquez-Ominami, candidato do Partido Progressista (PRO) no debate televisivo.

O candidato da Frente Social Cristã, por sua vez, exibiu uma bandeira de Cuba e se solidarizou aos manifestantes que protestam contra o regime do Partido Comunista Cubano, além de cobrar Boric pelo apoio do Partido Comunista, aliado do candidato, à controversa reeleição de Daniel Ortega à Presidência da Nicarágua.

Em distintos momentos do debate, mediadores e candidatos ressaltaram, porém, que a principal preocupação dos eleitores chilenos é a situação de seu próprio país. As intervenções mais inflamadas ocorreram durante a discussão de temas sociais, como direitos e repressão a protestos de rua.

A primeira peculiaridade da eleição deste ano está no fato de que Boric e Kast não pertencem a partidos tradicionais em seus respectivos campos.

Embora ambos sejam personalidades políticas com trajetória longa e ocupem assentos na Câmara dos Deputados (Boric, desde 2014, e Kast, desde 2002), são muito menos célebres que os protagonistas de disputas anteriores.

“Nenhum dos dois é um candidato comparável a Lagos, Bachelet ou Piñera”, escreveu o comentarista Carlos Correa no jornal La Tercera, de Santiago, referindo-se aos ex-presidentes Ricardo Lagos e Michele Bachelet, do Partido Socialista, e ao atual ocupante do cargo.

Os novos rostos da política chilena são um dos muitos resultados da onda de protestos de 2019 e 2020, apelidada de Santiagaço, que desembocou na eleição de uma Convenção Constituinte para o país.

“O Chile vem mostrando um tipo de vitalidade política muito própria e intensa, antes mesmo da pandemia. Foi uma mobilização de esgotamento, uma ideia de ‘chegamos até aqui, não aguentamos mais’. Não foram só setores populares, mas classe média e juventude”, diz Monica Hirst, docente na Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires, e professora convidada do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

“A constituinte, por sua vez, representou a possibilidade de uma mudança feita pelos de baixo. Depois, houve decepção, até pela morosidade dos debates.”

Os dois favoritos compensam a fama discreta com posicionamentos estridentes: ambos são considerados mais à esquerda e à direita do que os preferidos em disputas anteriores.

Boric propõe novo sistema de aposentadorias que assegure um valor mínimo de 250 mil pesos para todos os maiores de 65 anos, salário mínimo de 500 mil pesos até 2025, 500 mil novos empregos para mulheres e jornada de trabalho de 40 horas semanais.

No terreno das questões de gênero, o deputado de 35 anos defende criminalização da violência contra mulheres, legalização do aborto e plano de direitos sociais LGBTQIA+.

Boric enfatiza o próprio envolvimento no chamado Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição, firmado em 15 de novembro de 2019 e que lançou as bases para o início de um processo constituinte no país.

“É o que eu entendo por liderar: ser capaz de se sentar com setores distintos para discutir o bem comum”, disse o deputado do partido Convergência Social no debate de segunda-feira.

“Boric foi um dos idealizadores do acordo de novembro de 2019 (que abriu caminho para a convocação de uma Constituinte após uma histórica onda de protestos) e propõe políticas feministas, de aumento da arrecadação fiscal e de crítica ao neoliberalismo”, afirma Priscila Caneparo, professora do Curso de Direito da Unicuritiba.

“É um candidato ultraprogressista, que aponta para uma reversão de problemas aprofundados no governo socialista de Michele Bachelet de 2006 a 2014.”

Sob o slogan “Atreve-te, Chile”, Kast propõe uma “batalha cultural, ideológica e programática para retomar o caminho da verdadeira dignidade humana e o desenvolvimento”, inspirada pelo trinômio “República-liberdade-família”.

Defende o fim da agenda de gênero (em 2017, num tuíte, criticou um suposto “lobby gay”) e subsídios familiares apenas para casais casados. Questionado no debate de segunda-feira sobre seus elogios à ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), exibiu uma bandeira de Cuba e afirmou, em referência aos protestos de ontem contra o regime da ilha, que “estamos com eles (os manifestantes de oposição)”.

“O Chile sofreu e sofre o mesmo tipo de dificuldade que outros países da região em matéria de avanço de projetos e bandeiras progressistas. O progressismo está mal na nossa região e tem dificuldades de apresentar propostas que signifiquem a possibilidade de um processo virtuoso”, diz Monica Hirst.

“Mesmo quando ele ganha, as alianças que levam à vitória do progressismo são frágeis. O Brasil é também um exemplo nesse sentido. Enquanto o progressismo for opção ao bolsonarismo, as coisas vão bem. A questão é a construção e a retomada de um projeto progressista, lidar com os problemas delicados da desigualdade, da falta de distribuição de bens públicos, da opacidade das contas públicas”, acrescenta a acadêmica.

O Chile está longe de ser um típico país da América do Sul. Com uma população de apenas 19,1 milhões, fica em sexto lugar em número de habitantes, atrás de Brasil, Colômbia, Argentina, Peru e Venezuela.

O extenso litoral e a relativa escassez de terra, em contraste com os territórios dos vizinhos, empurraram o país para a exploração intensiva de recursos minerais destinados à exportação, como cobre e estanho, ao mesmo tempo que cristalizaram uma estrutura social arcaica e desigual.

As classes abastadas, às quais se somaram parte significativa de contínuas ondas migratórias, espelham-se na Europa. Os subalternos, entre os quais se sobressaem importantes populações indígenas, forneceram braços para mineração, indústria alimentícia, agricultura e pecuária.

Essas características permitiram o surgimento de uma significativa tradição de organização e politização trabalhista, simbolizada pelos fortes partidos Socialista e Comunista, que chegaram por vezes a monopolizar a representação política no país.

Por outro lado, até 1973 as forças armadas chilenas distinguiam-se de suas congêneres da região pelo estrito legalismo: jamais haviam rasgado a Constituição e assumido o poder.

Com o fim da ditadura de Pinochet, em 1990, o país ficou sob o regime da chamada Concertación (Negociação), um amplo pacto de governabilidade entre os partidos tradicionais de centro-esquerda e centro-direita.

O esgotamento da Concertación ficou evidente durante os protestos de 2019 e 2020, que trouxeram ao centro do debate político não apenas a dura realidade econômica dos mais pobres como a discriminação de mulheres e indígenas.

Fonte: BBC