Como o fato de ser um dos povos mais endividados do mundo afeta o voto no Brasil

Por Bruno Soller*

Taxa Selic, variação cambial, superávit comercial, reservas internacionais, além de diversas outras terminologias que inundam o eleitor brasileiro sobre a situação econômica do país, parecem grego aos ouvidos de quem apenas tem a missão do dia para resolver. O brasileiro comum está cada vez mais endividado e só quer saber do básico para poder sobreviver e passar pelas dificuldades do cotidiano. Talvez por isso, a sensação de melhora econômica parece muito mais crível aos olhos populares do que grandes mudanças estruturantes na política econômica.

Quase 80% dos brasileiros iniciaram o ano de 2023 com dívidas, segundo dados da CNC. 4 em cada 5 pessoas estão em situação econômica preocupante. É um marco histórico e que coloca o Brasil entre as dez nações com a população mais endividada do mundo. O valor da dívida média do brasileiro é quatro vezes um salário mínimo, considerada de média complexidade. Em uma pesquisa divulgada pela Genial/Quaest, 31% dos entrevistados assumiram ter muitas dívidas, índice que aumenta na população de menor renda, que recebe até R$ 2.640 mensais.

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Nesse contexto de desajuste completo, o Governo Federal lançou dois programas para tentar diminuir o endividamento popular: o Renegocia! e o Desenrola Brasil. O debate sobre a questão ganhou muita força na eleição presidencial. O então candidato do PDT, Ciro Gomes, polemizou ao prometer que limparia o nome de todos os cidadãos que tinham restrições no SPC e Serasa. A promessa não pareceu muito real aos olhos dos eleitores, o que acabou culminando em uma enxurrada de memes e brincadeiras nas redes sociais.

Um dos pontos mais importantes ao observar a questão econômica e o voto é que o Brasil é um país de imensa maioria pobre. De acordo com o Critério Brasil, da ABEP, são 28,7% dos brasileiros de classe D, 26,4% de classe C2 e 21,1% de classe C1, ou seja, 76,2% ou ¾ da população é de classe C e D. Nesse ínterim, a economia do dia a dia é a que ganha maior relevância para as pessoas e o link com as mudanças macroeconômicas é absolutamente longínquo para a compreensão da maioria do povo.

Em grupos qualitativos a maior vitória até agora do governo Lula foi a diminuição do preço dos alimentos e de serviços básicos, como gás de cozinha. Muito mais do que o programa de renegociação de dívidas, a percepção da diminuição da carestia é o grande ativo de aprovação por boa parte dos eleitores. Esse entendimento remonta a questões do passado como quando o mundo passava por uma grande crise, e no Brasil, alcunhava-se essa tormenta de marolinha, e os preços, principalmente, de itens da chamada linha branca e o crédito eram fáceis e em abundância.

Esse resgate de memória do período de bonança, nas primeiras gestões de Lula, cria expectativa no eleitor de um retorno desse mesmo momento. Em uma pesquisa da RADAR Febraban, 73% dos brasileiros estão otimistas na melhora econômica nos aspectos pessoais e familiares. Não se consegue fazer um contraponto crítico de que a derrocada no governo Dilma teve a ver com certa irresponsabilidade na condução econômica, que incentivou crédito aos brasileiros, em um período de grave crise mundial.

A relação da esquerda com o salvamento imediato da população tem gerado um fenômeno interessante em toda a América do Sul, de quase que um “sequestro” do eleitor mais pobre pelos partidos de vertente socialista. Na Argentina, Sergio Massa, candidato kirchnerista, tem sua maior intenção de votos entre as camadas mais baixas da população. Na Bolívia, Evo Morales retoma o controle do MAS, consegue a expulsão do atual presidente e já pontua nas primeiras colocações nas sondagens iniciais para o pleito de 2025, puxado pelo eleitor de menor renda. No Equador, Luisa González enfrenta o empresário Noboa, no segundo turno, e com apoio de Rafael Corrêa, lidera entre os mais pobres.

Por muitos anos, o PSDB, partido que foi o grande adversário do lulismo, até a ascensão do bolsonarismo, em 2018, ganhou a pecha do partido das elites. O Plano Real, que findou a maior crise inflacionária da história brasileira, as privatizações das teles, que permitiram aos brasileiros o acesso quase que universal à telefonia móvel e a internet, a briga pela derrubada das patentes, que criou a condição do medicamento genérico, muito mais barato para o bolso do cidadão, foram conquistas importantes realizadas pelo partido quando no poder e que nunca ecoaram como populares.

A comunicação dos partidos à direita com as classes mais baixas é muito deficitária. Mesmo com todo o recurso despejado pelo governo Bolsonaro nos auxílios emergenciais durante a crise da covid-19, a sensação da população é que não há afeto ou cuidado desse nicho político com quem mais precisa. Durante as eleições era recorrente a ideia de que o auxílio nada mais era do que obrigação e que se pudesse Bolsonaro não o faria. Muitas pessoas ainda repetiam a narrativa de que o benefício só saiu em função do Congresso Nacional. Nessa época, até mesmo André Janones surgiu como um possível presidenciável com a fama de ter sido um dos que conseguiram o auxílio no valor de R$ 600.

Em pesquisa Datafolha, antes da eleição de 2022, 58% dos entrevistados diziam que Lula era o candidato mais preparado para combater a fome contra apenas 19% que consideravam Bolsonaro. Para 65%, Lula é quem mais defende os pobres, patamar bem distante dos 17% que consideraram o ex-presidente Bolsonaro. Esses números mostram a imensa diferença de sentimento que a população tem quando se associa a discussão entre pobreza e economia.

Para o brasileiro, mais vale um voo de galinha do que a promessa do voo de águia. Como as necessidades são urgentes, as dívidas se acumulam, o resultado imediato tem muito mais valor do que o planejamento necessário. Dificilmente, a direita ou os liberais conseguirão adentrar no voto das classes mais baixas, se não entenderem que é preciso falar para elas. Não adianta discurso professoral e anúncio de grandes mudanças sem que o impacto seja sentido por quem mais precisa. O pragmatismo lulista vai conseguindo novamente níveis de aprovação satisfatórios, mesmo em meio a um governo que, ainda, não conseguiu apresentar grandes mudanças.

*Bruno Soller é estrategista eleitoral. Especializado em pesquisas de opinião pública, é graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, com especialização em Comunicação Política pela George Washington University. Trabalhou no governo federal, Câmara dos Deputados e Comissão Europeia.

Artigo originalmente escrito para o blog “De Dados em Dados“, do Estadão.
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