(*) Por Gaudêncio Torquato
O mundo abre os olhos na direção do horizonte e tenta enxergar as retas e curvas do caminho. Quer ver se consegue descobrir o quê e o porquê os nossos irmãos do Norte, que habitam a maior potência econômica e militar do planeta, escolheram para liderá-los um empresário da área do entretenimento, conhecido por sua expressão misógina e machista, dando a ele um superpoder, eis que seu retorno ao assento no Salão Oval da Casa Branca pode ser considerado o mais retumbante da história norte-americana.
O impacto da vitória de Donald Trump abre expectativas no centro e nos fundões do planeta. Perguntas que emergem: conseguirá ele abrir uma “era de ouro” na terra americana, como anunciou em seu discurso de vitória? A promessa bate no sistema cognitivo da população como a implantação de uma sanghri-la, o paraíso tão sonhado pelos mortais. Conseguirá ele fechar as fronteiras do país, e fazer voltar para seus países milhões de imigrantes que buscaram realizar seus sonhos na terra de Abraham Lincoln? Conseguirá ele agradar seus eleitores com uma economia sem inflação e lhes garantindo um sólido poder de compra? Enfim, conseguirá Trump proporcionar aos eleitores o tão almejado conforto e bem estar?
Este escriba tem lá suas dúvidas. Puxo um fio da história. Há 193 anos, em abril de 1831, Alexis de Tocqueville e seu amigo Gustavo Beaumont embarcaram no Havre (França) com destino à Nação do norte. Os dois jovens magistrados se investiam de uma missão: conhecer e examinar a solidez das instituições penitenciárias. Cumpriram a tarefa. Tocqueville produziu o clássico A Democracia na América, onde pontuava sobre o que viu na jovem Nação: “existe um amor à pátria que tem a sua fonte principal naquele sentimento irrefletido, desinteressado e indefinível que liga o coração do homem aos lugares onde o homem nasceu. Confunde-se esse amor instintivo com o gosto pelos costumes antigos, com o respeito aos mais velhos e a lembrança do passado; aqueles que o experimentam estimam o seu país com o amor que se tem à casa paterna”.
Entremos nos dias de hoje. Espraia-se por todos os lados o desencanto. A desesperança. O país que elegeu, neste 5 de novembro, seu presidente, está coberto por uma camada de ódio, violência e medo. Pergunta-se: que amor à Pátria pode existir em espíritos tomados pelo pavor, pela violência de tiros à esmo (um, quase matando o próprio candidato Trump)? Qual o motivo da vitória de alguém que expressa posições misóginas, racistas, disposto a expulsar do território milhões de imigrantes? Que espírito público é este da população, quando a conflituosidade se expande no seio da maior democracia mundial?
O sonho americano é uma utopia. Ontem, ouvíamos o lamento de Simon Bolívar, o grande timoneiro, ao retratar a sofrida América Latina: “não há boa fé na América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento. A única coisa que se pode fazer na América é emigrar”.
Hoje, vemos a ameaça de uma espada sobre a cabeça daqueles que se abrigaram na “terra dos sonhos”. Emigrar foi a opção de massas carentes de regiões do planeta que escolheram a grande Nação para viver. Muitos pensam em retornar à antiga casa sob medo de o braço de um comandante que transpira vingança cair sobre suas cabeças.
Afinal, o que explica a eleição do tempestuoso dono do império Trump?
A resposta aponta para um mundo em conflito. O planeta vive uma era de dissonâncias. Guerras explodem em regiões. Os povos olham para os céus e não encontram faróis. As multidões continuam a querer se embalar com os sonhos de outrora. O gosto suave de passear pelas ruas, andar à noite, conversar com os vizinhos, buscar o calor da convivência, reforçando os vínculos de solidariedade, destruídos pela explosão populacional das grandes e médias cidades e pela deterioração da infraestrutura de serviços. A violência irrompe nos centros maiores e menores, empurrada pelo fluxo centrífugo de bandos incontroláveis que governos não conseguem deter.
As desigualdades afloram com força. Os ricos ficam mais ricos. Os pobres, mais pobres. As doenças se tornam pandêmicas. E assim, a chama telúrica se apaga sob o violento sopro da expansão desordenada das margens sociais. Os governos se tornam entes ineficientes. O blábláblá se expande. Nuvens plúmbeas tornam sombrios os horizontes. Novos e imensos grotões de miséria se abrem. Tristes tempos.
A cosmética das ruas ganha enfeites esquisitos. A imagem mais parece a de um jogo de futebol, disputado com a melhor bola da FIFA e os uniformes mais bonitos. Mas o campo é esburacado. Até os jogadores exibem sua “moderna” estética em cabeças trabalhadas por tesouras que fazem veredas no cabelo. As pinturas chamam a atenção. Um colorido extravagante comprova que os jogos de futebol passaram a ser desfiles mambembes de cabeças ocupadas por nova arte da tesoura, e onde tronco e membros são tomados por berrantes tatuagens. Frases de poesia bicuda e demônios desenhados é o que não faltam. Tudo parece um festival de assombração.
Nas prateleiras do poder, chegam reclamações sobre a eficiência dos serviços públicos, tocados por burocracias lentas e paquidérmicas, quadros funcionais ineptos e desmotivados. Explodem denúncias sobre negligências, malhas de corrupção. A realidade é amarga.
(*) Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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