A polarização discursiva e o novo coronavírus

A pandemia do COVID-19 gerou também impactos nos discursos políticos em todo o mundo e sob vários aspectos. Este é um dos assuntos abordados pelo consultor político mexicano Javier Sánchez Galicia no artigo “Siete modelos de polarización discursiva”, publicado na edição deste mês de maio da revista da ACOP – Asociación de Comunicación Politica, instituição sediada em Madrid.

Segundo Galicia, surge a partir do novo coronavírus um novo tema de divisão e conflito nas sociedades, saúde versus economia. Os que defendem prioritariamente as medidas de isolamento social para preservar vidas, contra os que defendem prioritariamente a manutenção das atividades econômicas, argumentando que estas também preservam vidas. A polarização, entretanto, não é um assunto novo quando tratamos de comunicação política.

O dia a dia de um governo é marcado pela dicotomia consenso-dissenso, sendo que para uma boa governabilidade é necessário construir uma maioria política alinhada em torno das principais questões de governo. Em campanhas eleitorais a troca de discursos é expressa entre o poder (que quer permanecer) e as partes aspirantes ao poder (oposição). O cidadão apoia um partido ou governo que apresenta o mais alto nível de avaliação positiva e rejeita quem tem o mais alto nível de avaliação negativa.

Galicia lista no artigo sete modelos de polarização, construídos a partir de temas específicos, que resumimos a seguir:

  1. Perfil dos atores

Este modelo é baseado em atributos pessoais de um candidato ou no desempenho de um líder de governo. A pandemia de COVID-19 colocou no centro a capacidade de liderança a partir da fala dos governantes. A pergunta é se os governos estão agindo corretamente. A comunicação institucional não tem como produzir avaliações positivas, mas, fundamentalmente, prevenir, conscientizar e modificar hábitos ou comportamentos. É a partir desse sentimento que crises podem representar oportunidades para fortalecer a liderança porque elas são caracterizadas por sua tendência ao caos e o líder representa ordem e segurança. Situações de crise contribuem irremediavelmente para confirmar, melhorar ou piorar o prestígio.

  1. Posição a favor ou contra em temas conjunturais

A segunda possibilidade de construir temas para o discurso está relacionada a questões conjunturais. A crise da saúde mostrou como um governo pode converter o risco em uma política pública. Os discursos presidenciais são um ícone de liderança e no contexto da pandemia, são a voz esperada para trazer tranquilidade e certeza.

Enquanto na Europa os discursos do Presidente francês Emmanuel Macron ou da chanceler alemã Angela Merkel Javier fizeram referência ao enfrentamento de um guerra contra um inimigo invisível, na América Latina discursos variaram do coloquial ao formal, apoiado por uma narrativa religiosa ou sobre o papel de Estado na posição adotada pelo presidente de El Salvador Nayib Bukele. Os presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro e do México, Andrés Manuel López Obrador, mostraram por sua parte, um desdém incomum diante da crise de saúde que se espalhou entre s cidadãos de seus dois países.

  1. Privilégios versus necessidades

Sem negar a importância da imagem do candidato nas campanhas competitivas – especialmente nas mensagens de televisão – parece ser uma tendência que os eleitores perguntem mais e mais sobre sua própria situação e sobre o que partido ou candidato pode fazer em benefício de suas necessidades específicas.

Em se tratando de governos, os cidadãos exigem melhorias em suas condições econômicas. A narrativa pobres contra privilegiados confirma essa lógica. De acordo com estimativas da CEPAL, a pandemia ameaça deixar entre 14 e 22 milhões de pessoas em extrema pobreza na América Latina. E embora a narrativa do discurso observe que o COVID-19 não discrimina ricos ou pobres, a realidade é que o vírus ataca impiedosamente aqueles que têm poucos recursos para se defender.

  1. Paz versus violência

Em locais submersos em um clima de violência causada pelo crime organizado e a falta de segurança pessoal e patrimonial, reivindicações de paz e tranquilidade aumentam.

A lógica de buscar a paz e rejeitar a violência é adotada firmemente pelos eleitores. O discurso contra o coronavírus, o inimigo de uma guerra silenciosa e sanitária, destaca a liderança do líder, gerando sentimentos de segurança e certeza para aqueles que são ameaçados pela pandemia mais agressiva dos últimos 100 anos.

  1. Continuidade versus mudança

Os governos estão enfrentando atualmente um referendo permanente. A escolha dos eleitores em cada processo eleitoral é entre endossar a confiança no seu governo ou exigir uma mudança.

Cabe ao eleitor dar ou não uma chance à oposição de chegar ao poder. Em alguns casos é mais que um voto de punição, é um voto de saciedade, uma votação antissistema. Sob o abrigo da insatisfação democrática, surgiram no mundo diversos movimentos antissistema que tiraram vantagem da insatisfação e desconfiança dos cidadãos para com as instituições. Tais movimentos ocuparam o lugar anteriormente ocupado pelos eixos esquerda-direita ou liberalismo-socialismo, identificados com os partidos convencionais.

Um novo referendo terá como eixo os resultados obtidos no controle de danos da crise, por parte dos líderes políticos em cada país.

  1. Corrupto versus menos corrupto

O enriquecimento da classe política em contraste com o aumento nos níveis de pobreza dos cidadãos colocou em xeque a questão da corrupção. Nos governos essa polarização se materializa em formato de escândalos, quando um político é acusado de realizar, no presente ou no passado atitudes ilegais ou antiéticas. Usualmente tais práticas ocorrem em segredo e só se tornam visíveis quando viram pauta da mídia.

O descontentamento político persiste apesar da propagada espetacular dos governos. Está ligado à imagens da política como engano e dos políticos como incompetentes, pouco produtivos e, claro, corruptos. A combinação de corrupção e crise econômica aumenta significativamente a desconfiança em relação à classe política.

  1. Medo versus esperança

A polarização entre dois extremos radicalmente opostos, medo contra esperança, define entre a mudança ou a manutenção política de um grupo no poder.

Ativar um medo do futuro (economia, perda de emprego, insegurança, perda de conquistas) através de ameaças diretas ou veladas, faz com que boa parte dos eleitores se abstenha de votar ou ratifique seu apoio ao regime que os governa. Em contraponto a ativação da esperança, é utilizada como mecanismo para conseguir uma mudança justa com o desejo de melhorar a sua qualidade de vida e de sua família.

No caso da pandemia de COVID-19, o medo serve não apenas como motor persuasivo para mudar hábitos ou comportamentos, mas como o polo oposto da esperança de salvar vidas e sair da crise de saúde em breve. O mundo está sujeito a uma série de tensões e conflitos que pioraram com o aparecimento de coronavírus. A incerteza apreendeu a humanidade. A construção de um novo normal invade o discurso. Os cidadãos estão esperando por grandes mudanças na economia, na configuração dos Estados, na questão das fronteiras e sobre o comportamento social e humano que estará em risco permanene.

Fonte: Site da ACOP

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