Não existem mais eleições como antigamente

Por Renato Dorgan (*)

Tradicionalmente, até as eleições de 2014 existia uma lógica predominante, a polarização do azul x vermelho, que tomou conta da política nacional de 1994-2014, e que condicionou a análise de eleições. Mantras conhecidos como “eleições de prefeito não interferem em eleições presidenciais”, “ricos x pobres”, “coligações são essenciais pois ajudam na tropa de vereadores na rua ou no tempo de TV”, sempre foram verdades absolutas que ainda continuam influenciando nas estratégias traçadas por campanhas e nas análises de jornalistas e cientistas políticos.

Acontece que a partir das eleições de 2016 essa previsibilidade não é mais tão óbvia e precisa, as redes sociais trouxeram à tona milhões de versões sobre tudo, o mundo não é mais linear, nem tampouco a política e as escolhas eleitorais, as ideologias não são as mesmas, os costumes entraram na pauta, teorias da conspiração viraram verdades em massa, o poder de consumo dita as regras de satisfação pessoal, a justiça e a legislação eleitoral engessaram as eleições, não se discute propostas, o marketing político foi substituído por tentativas de se fisgar o eleitor com narrativas mágicas e desconstruções certeiras de adversários.

A religiosidade no Brasil mudou demais, de um país cristão católico viramos um país dividido num pentecostalismo muito mais judeu ortodoxo do que cristão, religiões de matriz africana seguidas clandestinamente no país durante décadas, encobertas sob a capa de um catolicismo, agora são assumidas, o catolicismo virou relativo e se mistura com crer em algo, o ateísmo é admitido por alguns publicamente, o que não fora em nenhum momento de nossa história, e isso muda demais escolhas e narrativas eleitorais.

Novas gerações crescem com linguagens de vídeo games, redes sociais, atores de TV fazem menos sucesso que youtubers, o mercado financeiro ultrapassou a indústria e o comércio, as grandes empresas mundiais além de bancos são unicórnios digitais.

Dentro de toda essa mudança a linearidade exposta no início dessa reflexão não existe mais, as ondas vão e voltam, a novidade das eleições de 2016 de gestores eficazes da área privada (outsiders) em combate a dezesseis anos de uma visão paternalista e estatista acabou em dois anos, a pandemia veio, o povo precisou do Estado mais que nunca na saúde e na distribuição do Auxilio emergencial, antigos políticos voltaram, muitos que atenderam seus munícipes de forma eficaz se reelegeram.

O PT não acabou como previa-se em 2016, voltou menor em 2018 (com Haddad no 2º turno), porém errou a partir disso, quando acreditou que em 2020 continuaria como opção dos eleitores pobres contra os interesses dos ricos, não percebeu que essa lógica não existe mais, a mística do azul x vermelho, por mais que especialistas consagrados insistam nessa forma polarizada de análise.

O eleitor progressista quer uma esquerda remodelada, que discute costumes, fora do jogo pesado do toma lá da cá, sem pragmatismos, Boulos, Manuela e Marília Arraes no
2º turno significaram isso, mas sofreram no 2º turno com a alta rejeição da esquerda que deixou marcas não cicatrizadas ainda, cai por terra a narrativa que o envolvimento com a corrupção é válido em nome de um bem maior de cuidar das pessoas, isso não é aceito mais pela maioria do eleitor de classe B e C. Isso é percebido em pesquisas qualitativas, a rejeição da esquerda continua alta (por causa da Lava a Jato) e o resultado de segundo turno nas capitais mostra isso.

O Centro comemora, como comemorou em 2016, sem dúvida seus números são bons, venceu na maioria das cidades, mais vejo uma ilusão perigosa aí, o Centro manteve cidades que sempre dominou, o Centro mudou pouco suas perspectivas presidenciais para 2022, existe um longo caminho a se percorrer para o fiasco de 2018 não se repetir, o Centro precisa ter uma identidade ideológica antes de ter nomes. O que o Centro acredita? O que não acredita? Perguntas simples, hoje irrespondíveis.

Os partidos do Centro ganharam e sempre ganharão a maioria das cidades do país, pois fazem eleição de maneira organizada, distribuíram o fundo eleitoral em 2020 olhando para composição do Congresso em 2022, fazer prefeitos significa eleger Deputados, ter mais fundo partidário e eleitoral, isso dá mais força de negociação junto a um presidente fraco na política, porém isso não garante desempenho nas urnas majoritárias para a presidência.

Acontece que a vitória do Centro (seja ele centro direita ou esquerda), nos lugares de 2º turno, nasce de uma decisão amedrontada do eleitor, baseada na escolha do menos pior (voto útil), pesquisas qualitativas apontam para essa tendência, em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife isso foi nítido, nesses lugares a vontade de se votar no 2º turno não veio junto com a expectativa da esperança ou da mudança necessária, mas sim em cima da rejeição que ainda perdura na esquerda e em candidatos da direita fracos administrativamente.

O que temos que atentar são as vitórias expressivas com larga margem de vantagem em primeiro turno, são vitórias reais, de gestões aprovadas, baseadas na eficiência administrativa, na segurança do presente e na expectativa de um futuro melhor, muitos destes vitoriosos estarão naturalmente credenciados a 2022 na corrida de Governos Estaduais.

A derrota eleitoral de Bolsonaro é latente, mas se dá muito mais por falta de organização política, o presidente não tem sequer um partido, apoiou candidaturas no meio da corrida de maneira desastrada, porém seu grande erro estratégico do ponto de vista eleitoral (não econômico) foi outro: a redução pela metade do auxílio emergencial a um mês das eleições de primeiro turno.

Sua aprovação comemorada nos meses auge da pandemia desmoronou, a relação amorosa não tinha nada de amor, era de necessidade, na medida que o auxilio cai a aprovação cai, quando terminar em dezembro, somados a carestia de preços de alimentos, desemprego e o quebra-quebra de empresas, sua aprovação desmoronará possivelmente.

É na descrença de melhoras que reside a insatisfação eleitoral, traduzida na maior abstenção da era pós-ditadura, se o Centro não inspirar esperança pode cair no mesmo erro de 2018, o de lançar uma pluralidade de frentes e a eleição novamente se polarizar entre extremos, com a vitória do menos pior.

Porém, o erro não se resume a se ter vários candidatos de Centro (que seria um erro fatal), mas também se escolher um candidato único errado pra se combater os extremos, escolhendo alguém que não tenha identidade com as angústias do brasileiro comum, com excesso de marketing tradicional ou que não seja levado a sério como opção.

A possível crise econômica que se aproxima aumentará as necessidades básicas das massas, aumentará o desespero das famílias em viver o presente de maneira digna, o futuro parecerá sombrio, em qualitativas ouvimos ultimamente de chefes de família das classes C e D (predomínio do brasileiro) de 35 a 45 anos, que suas vidas são piores que a dos seus pais com a mesma idade, principalmente no aspecto financeiro, a ausência de um candidato forte (que some anseios da população e identidade com as pessoas) no campo do centro, pode gerar um reposicionamento da esquerda “rejuvenescida” com um discurso mais assistencialista, se posicionando bem pra 2022, isso criará um efeito político contrário que imagina o Centro, assim como foi em 2018, fortalecendo Bolsonaro como o menos pior, num confronto com uma esquerda competitiva.

A abstenção recorde em várias cidades de porte, o número de votos nulos e brancos relativamente alto, mostram que um tipo de eleitor não se sentiu contemplado nessa eleição, diferente de 2018, e aí pode estar adormecido parte do eleitor de direita, que não se sentiu motivado em ir às urnas.

O mundo está mudando rápido, o marketing agressivo dos seguidores de Bolsonaro nas redes sociais assustou as pessoas, com discursos violentos descabíveis contra as diferenças em meio a um ano de angústia e medo como foi o de 2020, grande parte dos seus eleitores não esperava por isso quando votou no presidente em 2018, e sim a resolução de problemas administrativos e econômicos do país, somado a isso, as eleições dos EUA deste ano com pauta antirracista e de respeito às diversidades sensibilizou muita gente, e definiu uma dominância de pensamento entre jovens do mundo ocidental que parece irreversível pros novos tempos.

A verdade continuará sendo o grande trunfo das eleições vindouras no Brasil, mas a era Bolsonaro mostra ao eleitor como aprendizado verbalizado nas unas em 2020, que a verdade precisa vir com liderança, seriedade e eficiência administrativa, porém cumpre lembrar que se essas características positivas de liderança vierem sem verdade, transformarão políticos competentes em vilões e mentirosos.

(*) Renato Dorgan é estrategista eleitoral, especialista em pesquisas de opinião pública e sócio da Travessia Estratégia.

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do portal Eleições Brasil, sendo de inteira responsabilidade de seus autores.

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